Nas últimas semanas, o debate sobre a saúde pública cresceu. A população exige serviços melhores, as prefeituras reclamam da falta de médicos e dinheiro, os médicos, por sua vez, fazem passeatas e trocam retratos por imagens de luto em redes sociais, cobrando condições de trabalho adequadas, direitos e plano de carreira. A crise aumentou com o lançamento do Programa Mais Médicos, do governo federal, que tem propostas polêmicas, como a ampliação do curso de medicina em dois anos com trabalhos no Sistema Único de Saúde (SUS) e a contratação de médicos estrangeiros em cidades com falta de profissionais.
Outra ação da presidente Dilma Rousseff foi a aprovação do Ato Médico, lei que regulamenta a prática da profissão no país, com dez vetos de pontos importantes, como o que restringia o diagnóstico de doenças e a prescrição terapêutica a médicos. Se por um lado a classe médica ficou enfurecida com os vetos de Dilma, outras categorias de profissionais da saúde, entre enfermeiros, fisioterapeutas e psicólogos, consideraram a medida um avanço.
A divergência de opiniões acontece porque, por mais que os lados tenham o mesmo objetivo – garantir atendimento de qualidade à toda a população –, há muita discordância sobre como fazer isso. Conheça abaixo as medidas mais debatidas no momento e os argumentos contra e a favor:
Programa "Mais Médicos"
Contratação de médicos estrangeiros
A proposta faz parte do “Programa Mais Médicos”, lançado há pouco mais de uma semana pelo governo federal, e pretende suprir a carência de profissionais nas periferias de grandes cidades e no interior do país. Os brasileiros terão prioridade nas vagas, mas se nem todas forem preenchidas será aceita a participação de estrangeiros. Os selecionados trabalharão na atenção básica com bolsa de R$ 10 mil por mês paga pelo Ministério da Saúde. No caso dos brasileiros, quando bem avaliados, os participantes ganharão bônus de 10% nas provas de residência. Os profissionais vindos de outros países não terão de fazer o Revalida, prova para validação do diploma no Brasil. O programa prevê que eles trabalhem no Brasil por até três anos e sejam acompanhados por uma instituição de ensino.
Prós: O Conselho Nacional de Secretarias de Saúde Municipais (Conasems) diz que o Programa de Valorização dos Profissionais na Atenção Básica (Provab), feito no ano passado com o mesmo objetivo, não foi capaz de preencher todas as vagas disponíveis. Mais de 1,5 mil municípios (55% dos inscritos) não conseguiram nenhum médico. “É consenso entre os prefeitos e secretários de saúde que, além de recursos, infraestrutura e equipamentos, faltam médicos. Estamos sendo cobrados pela população. Há superlotação, demora no atendimento, falta de hospitais e unidades básicas de saúde. Precisamos atuar em todas as frentes, e a interiorização dos médicos é uma delas. A contratação de estrangeiros vai preencher lacunas crônicas e emergenciais. Concordamos que eles podem ficar por um prazo determinado e, caso queiram permanecer no país, deverão fazer o Revalida. Se os médicos não querem estrangeiros aqui, então que ocupem o seu lugar e preencham todas as vagas”, afirma Antonio Carlos Figueiredo Nardi, presidente do Conasems.
Contras: “Somos favoráveis à vinda de médicos estrangeiros que foram aprovados pelo Revalida”, afirma o presidente da Associação Médica Brasileira (AMB), Florentino Cardoso. Segundo ele, todo país sério que recruta médicos formados em outros lugares os avalia rigorosamente. “É preciso saber quem se está colocando para dentro de casa. Falta de preparo e técnicas comprometem a qualidade do tratamento da população.” Cardoso também diz que o governo culpa a falta de médicos pelo caos da saúde. Para ele, o problema são as “péssimas” condições oferecidas para que eles possam exercer o seu trabalho. “Há muitos hospitais e postos de saúde sem maca, termômetro, fita métrica, balança e até água potável. Que médico vai se arriscar a trabalhar sob essas condições?” Para o presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Geraldo Ferreira, a medida não só não vai resolver o problema da saúde pública como pode piorar o que já está ruim. “Prejudica o povo brasileiro, que precisa de cuidados de gente qualificada para tratar sua saúde, e os próprios estrangeiros, que serão enviados para trabalhar em locais sem condições e garantias de trabalho necessárias”, afirma Ferreira. “Ao que parece, correm o risco de serem ‘escravizados’.”
Ampliação em dois anos do curso de medicina
O “Programa Mais Médicos” criará nos cursos de graduação em medicina um ciclo de dois anos para atuação na atenção básica e nos serviços de urgência e emergência do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir de 2015, a graduação terá então oito anos em vez de seis, como é atualmente – sem contar os anos de especialização (período de residência). Com a alteração, o governo espera a entrada de 18 mil médicos na atenção básica em 2021 e de 36 mil por ano a partir de 2022. Durante o período adicional no SUS, os alunos continuarão vinculados à faculdade e receberão bolsa do Ministério da Saúde. O modelo é inspirado em países como a Inglaterra.
Prós: “A complementação em dois anos do curso de medicina é fundamental tanto para a formação dos novos profissionais quanto para os municípios, que contarão com reforço nas equipes de atenção básica”, afirma Eduardo Tadeu Pereira, presidente da Associação Brasileira de Municípios. Ele diz que, em vez de pensar no atraso para conclusão da residência, é preciso considerar que os médicos terão uma formação mais humanizada e que o país precisa de “especialistas em gente”, como já disse o ex-ministro da Saúde Adib Jatene. “Ninguém vai trabalhar de graça. Os futuros médicos serão acompanhados pelas faculdades e receberão uma bolsa”, afirma Pereira.
Contras: Para o presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Geraldo Ferreira, aumentar em dois anos o curso de medicina com trabalhos no SUS é uma afronta às liberdades individuais dos médicos e uma forma de o governo conseguir à força mão de obra barata, sem que isso atenda às demandas da população. “O povo foi às ruas pedir melhorias na saúde. Mas a emenda está pior que o soneto”, afirma Ferreira.
Criação, até 2017, de 11.447 novas vagas em cursos de medicina e 12.372 de residência
O novo programa do governo pretende criar 11.447 novas vagas de graduação em medicina até 2017, distribuídas em 117 municípios. Os ministérios da Saúde e da Educação também pretendem abrir 12 mil novas vagas para residência médica, com quatro mil novos postos já disponíveis em 2014.
O novo programa do governo pretende criar 11.447 novas vagas de graduação em medicina até 2017, distribuídas em 117 municípios. Os ministérios da Saúde e da Educação também pretendem abrir 12 mil novas vagas para residência médica, com quatro mil novos postos já disponíveis em 2014.
Prós: Uma das reivindicações de prefeitos de todo o país é a formação de mais médicos. “A parte mais importante do programa é a criação de mais cursos de medicina. É a medida mais profunda e permanente para superar a carência de profissionais. A contratação de estrangeiros é apenas emergencial. Com a abertura de mais vagas, em 2020 a falta de profissionais já será amenizada”, afirma Eduardo Tadeu Pereira, presidente da Associação Brasileira de Municípios. Ele espera que o Ministério da Educação supervisione o processo de abertura de novas faculdades e mais vagas para que a qualidade dos cursos não caia.
Contras: A diretoria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo divulgou uma nota na semana passada sobre o “Programa Mais Médicos” em que chama a criação de mais vagas nos cursos de “temerária”. “A proposta de aumento de mais de 11 mil vagas para a graduação em medicina é temerária num quadro em que diversas instituições atualmente credenciadas pelo Ministério da Educação não oferecem formação adequada aos seus alunos, inclusive sem hospitais de ensino, fundamentais para a educação médica. O exame do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) tem apontado, ano a ano, a insuficiência dessa formação.” Roberto D’Ávila, presidente do CFM, tem a mesma preocupação e afirma que uma faculdade de medicina “não se faz do dia para a noite”. “O curso tem 7.200 horas só de aulas regulares. Ainda precisa de laboratórios bem equipados, hospital-escola e corpo docente qualificado, com profissionais com mestrado e doutorado”, diz D’Ávila.
Vetos ao Ato Médico
Veto à exclusividade dos médicos na realização de diagnósticos
Em tramitação há mais de 11 anos, o Ato Médico (Projeto de Lei 268/2002), que regulamenta a profissão dos médicos, foi aprovado pelo Congresso Nacional, mas vetado parcialmente pela presidente Dilma Rousseff. Um dos pontos mais polêmicos, que previa exclusividade aos médicos de formular diagnósticos de doenças e prescrever remédios para tratá-las, foi vetado, apesar de o texto possuir outro artigo que já dizia que os diagnósticos específicos e regulamentados para outras áreas, como nutrição, enfermagem e psicologia, continuariam a ser feitos pelos respectivos profissionais dessas áreas. A justificativa do veto é de que o texto "impediria a continuidade de inúmeros programas do SUS que funcionam a partir da atuação integrada dos profissionais de saúde, contando, inclusive, com a realização do diagnóstico por profissionais de outras áreas que não a médica.”
Prós: Para o conselheiro do Conselho Federal de Enfermagem (CFE), Amaury Gonzaga, o artigo em questão é “muito abrangente” e ultrapassa competências de outros profissionais da saúde. “O médico tem que ter limites em sua profissão, sem interferir em outras.” De acordo com o conselheiro do CFE, a intenção dos enfermeiros e de outros profissionais da saúde não é fazer procedimentos que cabem aos médicos, mas exercer, sem supervisão médica, as atividades às quais foram instruídos. Ele cita exemplos da enfermagem, como aplicação de curativos e injeções, prescrição de medicamentos já protocolados para doenças crônicas e degenerativas (como hipertensão e diabetes), além de diagnósticos de doenças endêmicas e transmissíveis. “Ser enfermeiro envolve todo um processo de enfermagem, de acompanhamento, de leitura de sintomas e orientação ao paciente. Não estudamos cinco anos para ficar sob supervisão dos médicos.” De acordo com Gonzaga, o Ato Médico original anulava as funções de outras categorias. “Qualquer ação nossa estaria submetida à prescrição e supervisão médicas. Se tudo o que acontece num posto de saúde precisasse de prescrição médica, muita coisa deixaria de ser feita.” “A doença é multidimensional e várias profissões podem entender sobre ela”, diz o conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Celso Tondin.
Contras: O presidente do Conselho Federal de Medicina, Roberto D’Ávila, diz que a medicina existe há 6 mil anos e, há 2,5 mil anos conta com juramento e código de conduta. É uma profissão que exige muita preparação para ser exercida. “A medicina não é xamã, bruxaria. Pode oferecer muito às pessoas. É preciso ter bons profissionais e estrutura para uma medicina competente”, afirma. “Em nenhum outro país do mundo, a ser não regiões absolutamente carentes na África, é permitido que outras profissões assumam a realização de diagnósticos. E no Brasil há jurisprudência riquíssima tratando disso.” D’Ávila diz que a derrubada do veto não prejudicaria os programas do SUS, porque as regras determinam que todos os profissionais que atuam com diagnósticos sejam integrantes de uma equipe de saúde composta também por médicos, os responsáveis pelo diagnóstico final. “É inaceitável que uma pessoa procure um enfermeiro para obter um diagnóstico. É obrigação do governo garantir a presença de médicos em todas as equipes.” Para o presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam), Geraldo Ferreira, toda profissão deve ser regulamentada, para que se possa definir onde começa o trabalho de um e onde termina o do outro. “Exercer funções que não estão previstas para o exercício de sua profissão é charlatanismo. Cada um deve atuar no seu quadrado.” Segundo ele, no geral, cada profissional tem consciência do que é seu dever fazer e do que tem capacidade para fazer. “Esses vetos foram mais uma medida do governo de contrapor as categorias da saúde para criar uma crise artificial e nos desestabilizar, desviando o foco do que realmente deveria ser discutido.”
Veto parcial à exclusividade de médicos para procedimentos invasivos
O Ato Médico determina que são privativas do médico atividades como indicação e execução de intervenção cirúrgica, sedação profunda e procedimentos invasivos, sejam terapêuticos ou estéticos. Dilma vetou o trecho que indicava a invasão da pele atingindo o tecido subcutâneo para injeção, sucção, punção, insuflação, drenagem, instilação e enxertia. Isso porque, segundo o governo, a utilização da acupuntura privativa de médicos restringiria a atenção à saúde e o funcionamento do SUS.
Prós: São poucos os países que restringem a acupuntura aos médicos, diz Evaldo Leite, presidente da Associação Brasileira de Acupunturistas. “Somos totalmente a favor do veto porque sabemos que, com a formação adequada, uma pessoa que não fez medicina pode ser um acupunturista muito competente. Quase em todos os países a acupuntura é um procedimento multidisciplinar, realizado tanto por médicos quanto por não médicos. A decisão de Dilma é correta e justa, e vai beneficiar muitos pacientes e profissionais.”
Contras: Roberto D’Ávila, presidente do Conselho Federal de Medicina, diz que o governo ignorou 11 anos de debates e audiências públicas no Congresso sobre o tema. “Foram firmados acordos entre todos os conselhos de profissionais de saúde, e eles foram rompidos. Houve uma traição. A acupuntura não seria tratada neste momento. E o Supremo Tribunal Federal já disse que ela deve ser praticada por médicos, pois exige diagnóstico prévio. Se não se sabe qual a doença, como tratar o paciente?” O presidente do CFM afirma ainda que o Ministério da Saúde adotou medidas eleitoreiras. “Há a desculpa de que a saúde pública seria prejudicada, mas as intenções são outras. Outras categorias de profissionais são mais numerosas, e o governo está de olho nesses votos.”
fonte EPOCA
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